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Simão Dias,27/11/2024

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O lastro da Ditadura Militar na Segurança Pública

A percepção da segurança como guerra tem como consequência a naturalização das violações de direitos humanos pelas forças do Estado

João Rafael G. de Souza Morais/Le Monde Diplomatique
O lastro da Ditadura Militar na Segurança Pública A militarização da segurança pública. Créditos: Marcelo Freixo

A violência que escala nas cidades brasileiras tem, como qualquer fenômeno social, múltiplas razões e dimensões. Precisamos discutir a sua dimensão institucional: o legado da Doutrina de Segurança Nacional na Segurança Pública. Passadas quatro décadas desde a redemocratização, esse legado tem exercido pressões desestabilizadoras sobre a democracia brasileira, desafiada a suportar índices de violência armada compatíveis com países em guerra, cenário que mobiliza discursos securitizadores inadequados, para dizer o mínimo, com o Estado de Direito.  

Podemos definir “securitização” como o movimento discursivo que visa apresentar e elevar uma ameaça à percepção de urgência, a fim de promover respostas excepcionais. Na ordem pública, esse discurso tem levado à militarização da segurança, produzindo violência armada e aprofundando o histórico déficit democrático brasileiro.  

Esse processo, legado pela Ditadura, consolidou um aparelho de segurança pública voltado para combater o inimigo interno, pilar regional da doutrina da “contenção” ao comunismo, que atribuiu aos militares latino-americanos a missão de repressão interna articulada com a hipertrofia da Doutrina Monroe durante a Guerra Fria. Esse processo fez da militarização um lugar comum na segurança pública, que se traduz na imprensa e opinião pública sob o discurso de uma “guerra urbana”, mobilizando os piores sentimentos populares e legitimando o modelo excludente/repressivo que marca a trajetória da modernização brasileira.

Dada a complexidade do quadro, nossa discussão partirá de duas questões: por que o discurso securitizador é incompatível com uma democracia? De onde vem o nosso problema? A questão inicial pode ser tratada a partir de outra, mais objetiva. 

Estamos em guerra?  

“Por que eu entrei para a polícia? Eu sempre quis ser militar, sempre tive esse fascínio. Eu queria participar de uma ação real. Talvez, nas Forças Armadas eu não tivesse essa oportunidade. […] Eu estou participando de uma guerra. Acontece que eu estou voltando para casa todos os dias, é a única diferença. Nossa guerra é diariamente nesses morros do Rio.”  

Rodrigo Pimentel 

A afirmação acima é de um ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais da PMERJ, que inspirou o Capitão Nascimento de “Tropa de Elite” (José Padilha, 2007). Ela é reveladora de algo estranho sobre o problema da segurança pública no Brasil, que aparece sob a constante narrativa de uma guerra.  

Segundo a ONU, uma guerra de baixa intensidade pode ser identificada a partir de dez a quinze mil mortes/ano. No Brasil, morrem por violência armada uma média de 60 mil pessoas/ano. Esses números desafiam os limites clássicos entre a guerra e a paz, insinuando a emergência de uma zona cinzenta. Em princípio, o que as polícias fazem não é (ou não deveria ser) comparável à guerra. Da mesma forma, a criminalidade também não deveria deter poder paramilitar. O contexto empírico nos lança ao limbo conceitual: se não podemos classificar o quadro em tela como uma guerra, certamente também não o podemos classificar como a paz prometida pelo Estado Moderno.

Segundo Weber (1999), o Estado pacifica um território estabelecendo a lei e sendo capaz de aplicá-la mediante o monopólio legítimo da violência, que assume duas direções: uma externa, através de forças armadas (FFAA) preparadas para a guerra, e uma interna, através de forças de policiamento voltadas à ordem pública.  

A primeira dimensão consiste na “canalização” da violência para o exterior – dando vida a uma espécie de estado de natureza internacional, uma vez que entre os poderes soberanos não há um suprapoder. A segunda compreende os meios internos de repressão, que devem usar de força comedida por atuarem dentro dos limites da pólis. Temos aqui, portanto, uma distinção ontológica entre os propósitos das forças armadas e das polícias, entre a guerra e a segurança pública. O elemento distintivo é a presença ou não de um inimigo.  

Diferente do “criminoso”, que deve ser contido dentro dos limites da lei, o inimigo representa uma ameaça existencial à pólis, cuja defesa é de responsabilidade das FFAA. O que nos leva a Clausewitz (2010), segundo quem a guerra é a etapa derradeira da política, seu instrumento de força, sua última ratio. A guerra visa o “esmagamento do inimigo” (p. 829), exclusivo à esfera política.  

O que é político, assim, se refere à associação/dissociação em virtude da possibilidade real de eliminação recíproca entre grupos humanos, o que cria o interno/externo, o dentro/fora, e permite que no interior haja ordem (segurança/paz), enquanto no exterior haja tensões entre os poderes soberanos (insegurança/guerra). O estado de guerra, portanto, está fora dos limites do contrato e a militarização consiste na dotação para o emprego da violência politicamente orientada a fim de eliminar uma ameaça existencial à soberania da pólis. 

Retomemos, então, nosso fio: estamos em guerra? Não. O quadro da violência armada nas metrópoles brasileiras não é um conflito militar. Ainda assim, tem sido pautado por forças militarizadas do Estado contra grupos paramilitares que disputam territórios periféricos abandonados pelo poder público.  

Essa disputa por territórios não é política, mas econômica. Não está em jogo a soberania do Estado, tampouco a sua capacidade de pacificar. Gradativamente, o avanço das organizações criminosas assume feição miliciana e infiltra as estruturas de poder. E, no limite, esse avanço compromete o controle territorial do Estado, mas não põe em xeque a sua soberania, porque o poder estatal detém musculatura perfeitamente capaz de operar a retomada dessas áreas – como a instalação das UPPs, na década passada, demonstrou. O problema, logo, não é uma ameaça existencial à pólis, mas a orientação política do Estado, voltada para a preservação de um status quo que condena a periferia à permanente exclusão/repressão, retroalimentando o poder territorial do crime organizado.  

É a essa condição periférica que devemos atentar para entender a engenharia da militarização da segurança pública. A militarização sugere a presença de um inimigo, sendo assim capaz de mobilizar a sociedade para legitimar a sua repressão. Tratei deste problema em outro texto no Diplomatique, no qual analiso as dimensões históricas desse sujeito. Vejamos agora a sua dimensão institucional, o que nos remete à nossa segunda pergunta. 

Militarização e insegurança pública  

A Doutrina de Segurança Nacional foi o resultado de um processo de profissionalização militar voltado para a ordem interna. Há vasta literatura dando conta disso e não compete ao nosso recorte. Para nossos fins, basta entender a emergência dos regimes de segurança nacional na América Latina.  

No começo da década de 1960, à medida que as tensões que culminariam no golpe militar de 1964 escalavam, a Escola Superior de Guerra aumentava em seus cursos a ênfase na guerra interna, no combate à subversão, conseguindo cada vez maior alcance nas fileiras. É nesse passo que a DSN define o papel das FFAA, podendo ser assim sistematizada (Coelho, 1976):  

– As Forças Armadas são um órgão essencialmente político, e, em vez de se fazer a política nas Forças Armadas, deve-se fazer a política das Forças Armadas.  

– Os princípios da organização militar devem reger a reorganização nacional. Isto é, não são modelos políticos, mas modelos organizacionais mais adequados para a reorganização nacional. Reorganizada a nação nestes moldes, o Estado haverá de ter perfil centralizado e a Nação haverá de ser movimentada por governos fortes apoiados basicamente nas Forças Armadas. 

– Tais princípios de reorganização nacional haverão de disciplinar a sociedade civil, além de permitirem o máximo rendimento nas diversas áreas da atividade nacional.  

– No binômio Segurança-Desenvolvimento, o primeiro termo deve ser entendido como um “fator de produção” indispensável ao Desenvolvimento. E cabe à organização militar produzir este fator. 

Essa arquitetura institucional resultou na Lei de Segurança Nacional, que, de 1967 a 1978, segundo Costa (2008, p. 43), “ilustra os efeitos da DSN, elaborada pela ESG, assim definindo seu objeto: ‘Art. 2. A Segurança Nacional é a garantia da consecução dos objetivos nacionais contra antagonismos, tanto internos quanto externos.” 

Sob essa perspectiva, a guerra e a estratégia são a única realidade e a resposta a tudo, e a “ameaça comunista” deu a ignição para a militarização da segurança pública. Ato contínuo, a banalização do discurso de “guerra urbana” revela a capilaridade da DSN também na sociedade civil, sedimentando a legitimidade necessária à institucionalização. A todo momento, os meios de comunicação alimentam esse discurso. Mas de onde vem ele, exatamente?  

No começo da década de 1970, o governo Nixon, em busca de popularidade, adotou uma agenda radical de combate às drogas que visava criminalizar grupos indesejados. Segundo um de seus secretários: “sabíamos que não podíamos criminalizar quem era antiguerra ou negro, mas convencendo a população a associar hippies à maconha e negros à heroína, e depois criminalizando fortemente os dois, poderíamos desestabilizar ambas as comunidades”. A “guerra às drogas” foi, portanto, um ensaio para a criminalização do sujeito marginalizado.  

Da mesma forma, durante a Ditadura, a Lei de Segurança Nacional não fazia distinção entre presos políticos e comuns. Uma vez capturados, ambos eram enviados para a mesma ala no presídio de Ilha Grande, onde deram origem ao Comando Vermelho. Cumpre acentuar que a fundação das facções no Brasil ocorre dentro de instituições do Estado, fato suis generis, se compararmos com os cartéis mexicanos e outras organizações do narcotráfico internacional. O aparecimento delas serviu para legitimar políticas que levaram à escalada da violência armada nos centros urbanos, fazendo da militarização das forças de segurança parte da paisagem.  

Essa foi a mais trágica herança da Ditadura Militar. Segundo Coimbra (2020, p. 14): “Com relação à DSN hoje, […] os ‘inimigos internos do regime’ passam a ser os segmentos mais pauperizados e não mais somente os opositores políticos. São todos aqueles que os ‘mantenedores da ordem’ consideram ‘suspeitos’ e que devem, portanto, ser eliminados. […] A modernidade exige cidades limpas, assépticas, onde a miséria – já que não pode ser mais escondida e/ou administrada – deve ser eliminada. Eliminação não pela sua superação, mas pelo extermínio daqueles que a expõem incomodando os ‘olhos, ouvidos e narizes’ das classes mais abastadas.”  

Os versos abaixo oferecem uma medida empírica do problema: 

“Você que me ouve, preste muita atenção / O Bope vai te pegar! / Homens de preto, qual é sua missão? Entrar pela favela e deixar corpos no chão! / Homens de preto, que é que você faz? / Eu faço coisas que assusta o satanás! / Cachorro latindo / Criança chorando / Vagabundo vazando! / É o Bope chegando! / É o Bope matando!”  

Na canção do Bope, o inimigo aparece incontroverso: “Entrar pela favela e deixar corpos no chão!”. Por isso, Franco (2014, p. 41) sublinha que “a forma como a polícia militarizada do Brasil trata jovens negros, pobres, como inimigos em potencial do Estado de Direito precisa produzir uma impressão na população de que está em jogo a defesa de todos.”  

A percepção da segurança como guerra tem como consequência a naturalização das violações de direitos humanos pelas forças do Estado. Segundo Raul Santiago, ativista e morador do Complexo do Alemão, “é muito ‘louco’ a gente ter um ‘caveirão’ circulando nas favelas do Rio de Janeiro, parecido com o que era usado na época do Apartheid, na África, que é usado hoje no controle de Israel sobre a Palestina, um carro blindado com capacidade de disparar tiros por todos os lados. Toda política pública que chega ‘pra’ favela vem através da Secretaria de Segurança. Então, o Estado dialoga com a favela nos observando a partir da mira do fuzil. Esse é o nosso contato com o mundo enquanto cidadão. Mas [a sociedade] se sente segura porque ‘tá’ passando no jornal que assassinaram pessoas dentro da favela.” 

Considerações finais  

Historicamente, a repressão do Estado brasileiro tem sido apontada contra a periferia. Grande parte dessa violência é legitimada pelos “autos de resistência”, que têm servido para proteger violações de direitos humanos, incentivando a violência policial. Esses policiais, não obstante, enfrentam uma situação limite contra grupos fortemente armados que vitimam mais agentes no Brasil do que em qualquer lugar. E, para os cidadãos, o cotidiano se torna uma constante de violações, inclusive do direito à vida.  

Segundo Souza (2015, p. 19): “Os dilemas da segurança pública brasileira são reflexos de um legado político autoritário. […] O medo derivado da violência urbana, somado à desconfiança nas instituições do poder público encarregadas da implementação e execução das políticas de segurança produzem uma evidente redução da coesão social, o que implica, entre muitos problemas, na diminuição do acesso dos cidadãos aos espaços públicos; na criminalização da pobreza (à medida que determinados setores da opinião pública estigmatizam os moradores dos aglomerados urbanos das grandes cidades como os responsáveis pela criminalidade e violência) e na desconfiança generalizada entre as pessoas, corroendo laços de reciprocidade e solidariedade social.”  

Em suma, como aponta Soares (2019, p. 33), “a boa forma de uma organização é aquela que melhor serve ao cumprimento de suas funções”. Simplesmente, a militarização não atende à função policial. Nesse quadro, produzir resultados se torna prender e matar. Assim, serão os grupos sociais mais vulneráveis aqueles mais suscetíveis à escolha dos policiais.  

É imperativo concluir que a militarização da ordem pública não produz segurança e, de modo análogo a um regime de ocupação, ressignifica os sujeitos vulneráveis e agentes de segurança como, respectivamente, “danos colaterais” e “baixas de combate”, cenário legado pelo regime autoritário e que tem contribuído para sufocar as aspirações democráticas brasileiras. 

João Rafael G. de Souza Morais é historiador, doutor em ciência política e professor no Instituto de Estudos Estratégicos da UFF 




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