Regulação só para “gringos”? Especialistas explicam como big techs impõem colonialismo digital
Os desafios na América Latina para garantir o respeito aos direitos humanos na internet
O mercado da desinformação e a ameaça de um colonialismo digital. A liberdade de expressão, a transparência e a responsabilidade como pontos básicos para a regulação democrática das plataformas digitais. A inteligência artificial em seu contexto. Os desafios na América Latina para garantir o respeito aos direitos humanos na internet.
Por Tatiana Carlotti
Estes foram alguns dos temas da terceira discussão do Seminário Internacional Comunicação para a Integração, ocorrido entre 20 e 22 de setembro, na “casa popular” do MST na capital paulista, o Armazém do Campo (Alameda Nothmann, 860).
Promovido pelo Centro de Estudos Alternativa Barão de Itararé e pela agência Inter Press Service (IPS), o evento reuniu jornalistas de veículos de comunicação na região, comunicadores e pesquisadores para pensar coletivamente as possibilidades efetivas de integração do setor no continente.
A mesa, coordenada pelos membros do Barão, Larissa Gould e Anderson Moraes (Jornal Empoderado) reuniu: Ergon Cugler, membro do Barão de Itararé e pesquisador em estratégias de enfrentamento à desinformação no Instituto Brasileiro de Informação para a Ciência e Tecnologia (Ibict); Orlando Silva (Brasil), deputado federal (PCdoB-SP), ex-ministro do Esporte e ex-relator do PL2630; Betiana Vargas, pesquisadora na Universidad Autónoma de Zacatecas e analisa internacional; e Fabián Werner, diretor do Sudestada, presidente do Centro de Arquivos e Acesso à Informação Pública (Cainfo) e do Comitê Coordenador da Rede de Intercâmbio para a Liberdade de Expressão na América Latina e no Caribe (IFEX-ALC).
Mentira engarrafada e colonialismo digital
Pesquisador de estratégias de enfrentamento à desinformação pelo Ibict, em particular na àrea da Saúde, Ergon Cugler destrinchou o funcionamento das fake news e o mercado dos algoritmos, acenando para o atual colonialismo digital em defesa da regulação das plataformas.
Desinformação, explicou Cugler, é “uma informação falsa ou tirada de contexto que tem o objetivo de desinformar. São conteúdos de comunicação que têm algum tipo de interesse por trás” (político, econômico, terrorismo social), com consequências trágicas como a queda na taxa de cobertura vacinal de 97% em 2015 para 75% em 2020, retrocedendo ao patamar de 1987.
Foto: Priscila Ramos/MST
Ele citou o caso de uma teoria da conspiração sobre vacinas que injetariam no nanorobôs e microchips no corpo das pessoas. Por que inventaram isso? Ergon conta que, na sequência, começou a ser vendido um remédio milagroso, o “detox vacinal”, contra as vacinas com microchips. “Três gotinhas de dióxido de cloro para tomar todas as noites antes de dormir”, ironizou, ao apresentar imagens de pais dando cloro (de limpeza industrial) em uma seringa para crianças com menos de 1 ano, bebês.
“Quando falamos de desinformação com D maiúsculo, não estamos falando de uma mera guerra de narrativa, disputa intelectual, opinião ou ponto de vista. Estamos falando de gente que por trás disso está ganhando dinheiro. Está fazendo um mercado, um modelo de negócio em cima da mentira. É a venda da mentira engarrafada”, destacou.
Ele contou que há quase mil comunidades ativas de grupos brasileiros no Telegram, com 27 milhões de publicações e 2,3 milhões de usuários, envolvidos em teorias da conspiração e narrativas antivacinas. Isso tudo é impulsionado pelo modelo de negócios dos algoritmos, pelo qual as pessoas recebem aquilo que gostam de ver.
“Se você gosta de vídeos de gatinhos, você vai receber vídeos de gatinhos porque o algoritmo é treinado para cada vez mais distribuir para você não o que é mais relevante, não o que é mais inteligente, não o que é mais útil para o debate público da sociedade, mas aquilo que mais choca e mais te prende, o que te faz ficar mais tempo dentro da plataforma”, explica.
Foi com esse modelo, explica Ergon, que as big techs se tornaram as empresas mais ricas do mundo, inclusive, há documentos vazados em 2021, que mostram a decisão da alta cúpula do Facebook por não retirar esse tipo de conteúdo nocivo porque eles produzem impulsionamento e geram muito lucro.
“A rede social hoje é como se fosse um país em que a Constituição é secreta, em que os algoritmos que nos enviam conteúdos, a gente sequer tem noção de quais são as regras”. Essa Constituição é escrita por uma “IA-cracia”, meia dúzia de companhias, em sua maioria sediada no Vale do Silício, nos Estados Unidos, que se comportam de forma diferente em relação aos países onde atuam.
“Nos países ditos desenvolvidos, de um bloco econômico majoritário, as big techs aceitam de boa fazer a regulação. Elas influenciam o lobby, fazem o seu jogo, mas no fim das contas, passa. Já, no bloco do BRICS e nos países da América Latina, o papo é o oposto”. Ele cita a cifra de 100 milhões de dólares investidos em lobby de mais de 650 companhias em países da América Latina e dos BRICS.
“O nome disso é colonialismo digital, porque há regulação em país dito desenvolvido, mas é proibida a regulação em países que eles não consideram soberanos de si próprios”, explicou. Em sua avaliação, não se trata de regular as tecnologias em si, mas de estabelecer regras e ordenamentos para essas poderosas empresas, e fazer com que a legislação em vigor nos países tenha validade também na internet.
Seu site, oferece um vasto material sobre o tema da desinformação e suas implicações (acesse aqui).
Liberdade, transparência e responsabilidade
O deputado federal e ex-ministro Orlando Silva (PCdoB-SP), que foi relator do PL2630 no Congresso Nacional, trouxe a dimensão política da discussão sobre a regulação das plataformas digitais e apontou a proteção da cidadania prevista na regulação europeia como um caminho.
Destacando a “oportunidade espetacular” que são as plataformas para a difusão do conhecimento, ele lembrou que defender regulação é valorizar esse “admirável mundo novo de possibilidades” e de conter os seus efeitos colaterais, “assim como é necessário combater os efeitos colaterais da economia do hidrocarboneto”, por exemplo.
Foto: Priscila Ramos/MST (@cylabg)
Na prática, “a discussão em torno de regulação ou não e de qual regulação é um debate sobre o combate ao neoliberalismo no mundo em que vivemos”. Por isso, “ter a noção estratégica de que é necessário soberania tecnológica para os povos e nações é uma premissa”, Apontou.
Ele defendeu que essa deve ser uma agenda de cooperação para os países do Sul Global, sob uma lógica de multipolaridade, para que não fiquemos submetidos “ao controle do capital de meia dúzia de empresas do Vale do Silício”.
Orlando apontou a existência de dois modelos regulatórios para a internet hoje: um dos Estados Unidos, “que isenta as plataformas de responsabilidade” e outro da Europa, “uma normativa que nitidamente valoriza a proteção da cidade”.
Destacando que o Marco Civil da Internet brasileiro “está sob o signo da regulação americana”, Orlando defendeu que “não podemos prescindir da defesa da cidadania, o principal traço das iniciativas regulatórias da União Europeia”.
“Talvez esteja mais perto da nossa realidade”, afinal, “não somos ainda um polo dinâmico de inovação, mas consumidores de serviços digitais e a nossa população estão expostas aos riscos da operação desses serviços sem regra”, complementou.
Por fim, ele defendeu esforços conjuntos entre os países no sentido da regulação, apontando três garantias cruciais para a proteção da soberania digital do Sul Global: da liberdade de expressão, o que significa “defender que o usuário possa contestar a operação que essas empresas fazem”; da transparência, ou seja, o direito da sociedade de saber como é a operação desses serviços; e da responsabilidade que, em síntese, é “uma internet livre de crimes”.
“Esse é o núcleo de uma regulação para as plataformas digitais e para um ambiente mais saudável. Esta é a luta”, apontou o deputado, reforçando que “não há solução local para um problema global. Isso exigirá uma articulação em rede, uma articulação global. Não por acaso, esse seminário é tão importante”.
Inteligência artificial e seu contexto
A analista internacional Betiana Vargas, pesquisadora na Universidad Autónoma de Zacatecas do México, trouxe um debate sobre a inteligência artificial e as possibilidades do seu uso pela nova aristocracia advinda da revolução tecnológica.
Betiana iniciou sua fala salientando o novo momento do capitalismo que vivemos, em meio à aceleração de todos os processos, com transformações no universo do trabalho, com o surgimento de novas habilidades para a classe trabalhadora, o que está relacionado ao aumento do desemprego, “produto dessas novas tecnologias que começam a ser incorporadas nos processos produtivos”.
Em termos de tecnologia financeira, ela também salientou os lucros do setor tecnológico com a crise de 2008 e o surgimento de uma nova aristocracia financeira e tecnológica hoje no mundo. É neste contexto, aponta, que surge a inteligência artificial.
“Ainda não existe uma definição de inteligência artificial”, isso depende de qual perspectiva você olha”. A de Vargas é a da tecnociência, “o que a gente está vendo hoje no campo de inteligência artificial tem a ver com uma convergência, uma multiplicidade de tecnologias. A inteligência artificial não poderia acontecer se não houvesse os semicondutores, por exemplo; e toda a indústria e o desenvolvimento da bio-nanotecnologia”.
Foto: Priscila Ramos/MST (@cylabg)
“A partir de dados de treinamento, esses sistemas começam a construir sistemas muito mais complexos, redes de neurônios, para criar ações determinadas de modo autônomo”, explica, citando o uso de IA: um sistema de IA do Exército israelense, usado no genocídio da Palestina, que determina alvos, “com uma estimativa de dez pessoas que podem ser mortas como ´perdas colaterais´”.
Em sua avaliação, “os governos, as universidades e as organizações civis têm um papel protagonista neste momento para determinar até onde vamos e para onde vamos”. Afinal, “o que as big techs estão capturando é justamente esse conhecimento técnico, estratégico que precisamos disputar a partir da territorialidade nacional”.
A IA, explica Vargas, “aprende pelo que fazemos todos os dias dentro do território digital” e segundo as estatísticas, “cada pessoa passa sete horas por dia no território digital, uma jornada de trabalho e estamos produzindo dados e movendo esse grande maquinário”, controlado, hoje, pelas big techs. As universidades precisam estudar “não só o problema da tecnologia em si, mas também o problema da tecnologia em seu contexto”, salientou.
E convocou: “nós precisamos conformar um bloco no âmbito regional que permita construir uma força que, de fato, possa disputar esse espaço” e, neste sentido, ela defendeu a responsabilidade do estado de entregar às organizações populares as ferramentas para que possamos travar essa batalha.
“A gente nem consegue comprar um microfone para fazer a cobertura das marchas… E nós precisamos que as marchas aconteçam nas redes sociais”, frisou.
Declaração latino-americana sobre transparência
Diretor do Sudestada, presidente do Centro de Arquivos e Acesso à Informação Pública (Cainfo) e do Comitê Coordenador da Rede de Intercâmbio para a Liberdade de Expressão na América Latina e no Caribe (IFEX-ALC), Fabián Werner falou sobre padrões que podem ser pensados para uma regulação democrática para as grandes plataformas.
Destacando que algumas iniciativas populares tentam, mas não conseguem disseminar suas ações através da rede, por estarem fora daquilo que os algoritmos querem; ou em casos mais graves, pela opção arbitrária de silenciamento dessas iniciativas; Werner relatou que “já começaram a aparecer tentativas de regulação para submeter essas plataformas aos interesses sociais”.
Uma dessas tentativas é a experiência em curso voltada à construção de uma “Declaração Latino-americana sobre Transparência das Plataformas de Internet”, com a participação de organizações da sociedade civil e de acadêmicos da América Latina e Caribe.
O objetivo é “criar padrões regulatórios sob uma perspectiva dos direitos humanos para as grandes plataformas”. Hoje, destacou, “um pequeno grupo de empresas são as únicas beneficiadas com toda esta situação, e são as únicas que sabem como funcionam os famosos algoritmos (…) É praticamente impossível saber quais são os critérios que elas usam, por exemplo, para estabelecer a moderação dos conteúdos”.
Foto: Priscila Ramos/MST (@cylabg)
Daí a iniciativa, que já tem três anos de construir essa declaração, a partir da sociedade civil e acadêmica, para cobrar uma prestação de contas das plataformas digitais. E “para que elas respeitem as obrigações democráticas que todos nós somos obrigados a respeitar e a cumprir por estarmos no Estado de Direito e numa democracia”.
E que isso seja feito através de “um diálogo multissetorial e com base em experiências que já aconteceram e nas instâncias em que as sociedades latino-americanas e caribenhas já criaram para garantir o respeito de direitos humanos, como a Convenção Interamericana ou a Unesco”, destacou.
Werner destacou ainda a importância de se dissipar iniciativas “absolutamente abusivas e autoritárias de alguns dirigentes políticos, sobretudo dos partidos de direita e ultradireita, que tentam se aproveitar de situações caóticas para impor legislações que os beneficiam”, como vem acontecendo no Chile, onde a direita se apropriou do conceito de liberdade de expressão para difundir discursos de ódio, exemplificou.
“Todos sabemos que essas plataformas são regidas basicamente pelo lucro desmedido e absolutamente abusivo, mas não sabemos quais são e de onde vem os algoritmos sobre os quais funcionam as suas atividades online. Isso, obviamente, tem implicações e efeitos graves sobre o debate público e a democracia”, apontou.
Em sua avaliação, urge “uma regulação democrática em prol dos direitos humanos da internet” bem como a garantia de “acesso, por parte da sociedade civil, a mecanismos de defesa que respondam à diversidade cultural, social, econômica e política que temos, por sorte, na América Latina e no Caribe”.
Confira a íntegra do debate:
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